A escrivã Maritza Guimarães de Souza e a filha adolescente foram mortas pelo marido e padrasto, também delegado da Polícia Civil do Paraná.
Histórias assim têm desfechos repetidos quase que diariamente: marido, que por uma justificativa passional, mata a esposa, filhos e, algumas vezes, encerra a tragédia tirando a própria vida. Só que neste caso, o protagonista é o delegado da Polícia Civil do Paraná, Erik Busetti e as vítimas, a esposa Maritza Guimarães de Souza, escrivã, e a enteada Ana Carolina de Souza, de 16 anos. O crime ocorreu em Curitiba, por volta das 23:30 de ontem.
O que realmente choca e levou a manchete aos principais portais de notícias do país, é que não se tratam de pessoas “leigas” envolvidas no crime. São profissionais preparados e adaptados às realidades cruéis da violência urbana. Ele, que confessou ter atirado na esposa e na enteada, estava lotado e atuando na Delegacia do Adolescente. Ela trabalhava como escrivã internamente, na Assessoria de Planejamento Operacional. Além disso, era um casal acima de qualquer suspeita da violência doméstica: 10 anos de relacionamento, uma filha ainda criança, enteada adolescente e residência em uma região nobre da cidade de Curitiba, o bairro Atuba.
Assim que acionou a Polícia Militar do Paraná, a primeira a atender a diligência, ele confessou o duplo feminicídio e entregou arma do crime. A filha menor – que dormia em um quarto da casa no momento da ocorrência – foi encaminhada pelo Conselho Tutelar a outros familiares que ficarão, por enquanto, responsáveis por ela.
Neste histórico, se evaporam os limites dos crimes de feminicídio. Será que Maritza, conhecedora da rotina de delegacias, das leis, teria condições diferenciadas para defender a filha e salvar a própria vida?
O crime
Pelo apurado pelo Plantão 190, a discussão ocorreu durante toda a tarde de ontem. A mãe possuía arma – que estava guardada mesmo no calor do momento, mas não pode reagir e morreu abraçada (ou tentando proteger) a filha adolescente. A perícia não confirmou que houve um ato voluntário de abraço, mas declarou que os corpos foram encontrados juntos.
Mas ter uma arma não daria mais proteção a ela, pois há uma característica bastante peculiar do feminicídio: a confiança que a vítima possui no algoz, que a conhece e “não seria capaz” de lhe tirar a vida – ao menos no julgamento da vítima. Neste ponto, há uma gritante e importante diferença entre esse tipo especial de crime e o homicídio. A mulher é morta pela sua condição de ser mulher e, geralmente, está em posição de vulnerabilidade em relação ao homem, pelo histórico do relacionamento e por outras questões, como dependência emocional, dependência econômica, laços familiares e guardas de filhos, entre outras peculiaridades que a impedem de se afastar dele.
Rumores indicam que um possível divórcio poderia ter motivado as brigas que culminaram nos tristes fins de Maritza e Ana Carolina. Mortes anunciadas ou tudo isso poderia ter sido evitado?
Dispositivos de lei
A Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha surgiu exatamente com o intuito de prevenir crimes como estes, punindo com mais rigor o responsável pela violência intrafamiliar, na tentativa de que não evolua para feminicídio. Depois da legislação específica, novos conceitos foram colocados como tipos de violência doméstica contra a mulher como a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. É considerada um dos três melhores ordenamentos sobre esse tema do mundo. Algo mudou? Muita coisa, juridicamente. Porém, há um caminho longo.
É só colocar em números. No Brasil, a cada 2 horas morre uma mulher vítima desta modalidade de crime. A cada 11 minutos, uma delas é vítima de estupro. A cada 4 minutos, uma mulher é vítima de violência doméstica. Importante salientar que esses são os números registrados. Os casos conhecidos. Aqueles que ultrapassaram a esfera particular e chegaram ao conhecimento das autoridades. A cifra negra é inimaginável!
Que caminho seguir?
Voltamos ao ponto: como se defender ou se proteger de crimes contra mulheres?
O primeiro e primordial ponto é entender a diferença de um mero aborrecimento de um relacionamento abusivo. É importante dizer que, quanto mais o tempo passa, mais difícil é identificar os sinais, pelos laços criados e as dependências citadas anteriormente. Isso não impede que um relacionamento já comece invasivo, porém a violência tende a se escalar e se agravar com o tempo (são informações amplamente discutidas e divulgadas na ciência da psicologia forense).
O relacionamento abusivo pode vir com ciúmes, com falsas simetrias, com percepções distorcidas da realidade, violações de direitos e, especialmente, prejuízos, sendo eles físicos, emocionais, financeiros e morais. Em exemplos práticos: mulheres que tem sua liberdade cerceada, que tem sua saúde mental abalada, que permanecem em desequilíbrio financeiro, que não podem decidir sobre seus sentimentos e, muito menos, sobre os rumos do relacionamento, estão mais suscetíveis à violência doméstica e, conseqüentemente, ao feminicídio.
Outra importante questão que evita crimes passionais: presença de rede de apoio! Sabe aquela história que em briga de marido e mulher não se mete a colher? Está mais que provado que “meter a colher” salva vidas. Seja a “colher” de familiares, de um psicólogo, da Delegacia da Mulher, de amigos, de vizinhos, enfim… Notificar a violência é torná-la conhecida e real. É permitir que outras cabeças pensem sobre a melhor solução a ser alcançada. Quem sabe uma medida restritiva , um afastamento do lar, uma prisão ou até um tratamento médico e um apoio psicológico.
É totalmente crível imaginar Maritza, em algum momento, chocada com casos envolvendo adolescentes, mesmo escrivã da polícia, ainda sim, se colocando no lugar das mães que perderam suas filhas… Mas não imaginando que a própria filha e ela mesma seriam mortas por 9 disparos de arma de fogo, na residência em que moravam, vítimas do companheiro de 10 anos de relacionamento.
Há quem enxergue uma ironia do destino neste feminicídio em especial. Mas o que se vê, não é nada mais que a realidade nua e crua no Brasil. De todos os dias. Lotando as próprias delegacias que Erik e Maritza circulavam.
E com o Dia Internacional da Mulher chegando, o que se pode comemorar?
Feminicídio não existe.